Crónica de Mário de Sousa | História de N’Nori

Crónica de Mário de Sousa
História de N’Nori

Noite dentro, nuvens negras e acasteladas rugiam de zanga, desfazendo a escuridão com relâmpagos sucessivos. Na tabanca, as torrentes de água desabavam nos telhados de colmo, corriam em pequenos rios que desaguando no chão de terra batida provocavam pequenas crateras esparrinhando barro vermelho para o ar.

Toda a gente se tinha refugiado nas casas de adobe e colmo e o grande fugu na bantabá resfolegava os últimos suspiros, submerso naquela água que o céu despejava, certamente insatisfeito com os homens que ali viviam.

Numa das casas, uma lâmpada de trapo ensopado em azeite de palma, derramava luz amarela sobre a esteira onde uma mulher, de cócoras, estremecia em convulsões e espasmos, agarrada a uma barriga descaída, quase a parir. Uma velha, mestra da tabanca, iluminava o Iran da família para que este favorecesse o nascimento.

Cá fora, a tempestade em todo o seu esplendor, continuava a zurzir a paisagem enviando raios e logo água para os extinguir. De repente, um raio mais violento acerta num poilão descomunal. O gigante, fendido de alto a baixo, raízes calcinadas, tomba com estrondo numa confusão de água, labaredas e verde-escuro fazendo estremecer o chão.

A violência da queda foi tal, que a mulher nunca chegou a perceber como nessa noite pôs a criança no mundo. No meio do pânico, o estremecer da terra ficou-lhe para sempre confundido um só, com o estremecer do seu ventre que só se deteve quando, com um berro estridente e prolongado, o nado caiu na esteira. A velha apanha-o, rasga o cordão com um caco de vidro e mostra a criança ao Iran. Lá fora, a árvore centenária jazia imóvel no chão. Assim nasceu mininu na tchon da Quinhamel que para sempre o protegeria. No dia da rapa Homem Velho lhe chamou Kyluange.

Bubacar Baldé era Homem Grande no Quebo. Na sua morança já quatro mulheres lhe tinham dado uma prole de nove filhos. Bubacar Baldé já não era novo mas era o homem mais rico da tabanca. Em vacas, tinha mais de cem e cabras, já há muito que as não contava. Uma tarde, falou com compadre Mamadu Ié, sobre a sua filha Makuta de oito anos. Oferecia-lhe bom preço pela codé. O negócio ficou fechado e Bubacar Baldé deu a sua palavra de que antes dos primeiros sangues Makuta apenas guardaria gado. E assim foi, até que, na altura certa, Bubacar Baldé a tomou por quinta mindjer, deitando-a consigo na esteira.

Makuta deixou então as vacas e passou a ter lugar na roda do pilão, juntamente com as outras mulheres. A barriga cresceu-lhe e Bubacar Baldé sentia o orgulho de macho velho. Quanto mais a barriga crescia a Makuta, mais ele comentava a virilidade de seu kodjun e todos admiravam aquela prenhada.

Chegou o dia de padi para Makuta, que se deixou ficar deitada. Bubacar Baldé mandou chamar mindjer mestra para ajudar no assunto. E aconteceu desgraça. Makuta deu à luz duas mininu fémias, duas djémias. Bubacar Baldé estava destruído pela vergonha. Pai de tantas barrigas nunca tal lhe tinha acontecido, e agora velho, a desonra caía sobre seu corpo. Preferia ver-se finadu. Makuta, banhada em lágrimas, jurou que na sua morança macho, só ele havia entrado e não entendia porque tinha gerado dois mininu na mesma barrigada. Mas lei é lei e Bubacar Baldé mandou chamar Ibraim N‘Kunto, chaman da tabanca, para escolher qual das meninas deveria ficar por ser legítima, e qual deveria morrer por ser de outro omi. Ibraim N’Kunto matou um galo e nas suas tripas leu qual era a menina boa e qual era a menina má e levou consigo para casa a má, enfaixada em pano pente; convocaria goss goss batuque, e lá os Irans diriam ao fim de quantos dias mininu deveria murir. Por fim, Bubacar Baldé enviou Makuta de volta para Mamadu Ié, exigindo-lhe as vacas que ela lhe custara. Só depois se acalmou, confortado pelos prantos de suas esposas.

Mas os olhos grandes e negros da mininu má enterneceram o velho chaman. Já na sua casa,

coloca na anca da menina o fio com o nas pendurado, o nas da segurança, que protegerá a

sua virgindade de bajuda até ao dia do casamento. Antes que os gritos roucos dos marabus se ouvissem na madrugada, já Ibraim N’Kunto, picada fora, punha pés ao caminho, fugindo às suas próprias convicções. Com ele, levava ao colo a pequenina gémea ainda embrulhada em pano pente. Assim nasceu e se salvou N’Nori.

As bolanhas de Quinhamel pareciam amaldiçoadas. A safra de arroz diminuía de ano para ano. Por mais comida que dessem ao Iran da tabanca, e por mais cabras que se sacrificassem, os

chamans não conseguiam ler boas notícias. A fome amedrontava as pessoas, porque a época

das chuvas estava à porta e mais uma vez o arroz definhava, e os ratos roíam as mandiocas.

Kyluange crescera, já não era mais criança e agora sofria, como todos os outros, as agruras de tempos adversos. Falava-se no concelho, que para os lados de Farim, perto da região de Kolda, os Mandingas conseguiam bons negócios, vendendo e comprando vacas. Por lá não havia fome e as crianças nasciam e cresciam sem doença. Eram precisos braços para conduzirem as vacas pelos matos até terras do Senegal. Kyluange contou su nota e su mueda, esperou pela toca-toca e partiu rumo ao Norte.

O velho Ibraim N’Kunto gostava de passar o fim da tarde sentado à porta da sua casa, a contemplar a azáfama das mulheres na bantabá da tabanca. Entoavam cantilenas monótonas enquanto, à vez, jogavam o pau com força dentro do pilão, fazendo os pedaços de milho saltarem. Salakynia, era uma povoação calma, não mais de três dezenas de famílias dedicadas ao gado. Há dezasseis anos, quando Ibraim N’Kunto por ali aparecera, a tabanca tinha menos gente. Mas o negócio do gado atraíra muitas famílias fugidas às fomes que assolavam o leste do país. Ibraim N’Kunto também havia prosperado. Possuía belíssimas lavras das quais cuidava com esmero. A sua mancarra era famosa e a mandioca produzia da melhor saka-saka da região do Oio. Mas tinha ultrapassado as seis décadas de idade e as suas costas já se queixavam quando a enxada baixava e entrava na terra. Como ajuda, apenas tinha N’Nori agora bajuda, a quem os rapazes saídos do fanadu olhavam com olho gordo, imaginando aquelas ancas esguias e pernas longas, que tão bem faziam gingar a capolana. Quando ela passava, de cabaça debaixo do braço, deixava para trás um rasto quente de cheiro a caju.

N’Nori era assim. Dedicava um carinho extremoso a Ibraim N’Kunto a quem chamava de avô. E eram uma família tranquila.

Uma vez por semana, na sombra do poilão da tabanca, a toca-toca despejava do seu bojo uma confusão de cabras, galinhas, cestos e sacas, tudo à mistura com corpos transpirados e cobertos de pó, maltratados pelos buracos das picadas. Mas era uma festa, era dia de ‘S. Toca-Toca’! O condutor, encarrapitado no tejadilho da viatura, desatava cordas e fazia descer toda aquela carga inimaginável, pequenas fortunas para cada um daqueles viajantes. Trazia também sempre dois sacos especiais, um com correio e outro com jornais que religiosamente entregava a Sô Gomes, português há muito submetido àquelas paragens, dono da única cantina da região. Kyluange saltou para o chão, sacudiu o pó da camisa enxovalhada, esticou-se desentorpecendo os músculos do tormento daquelas horas de chocalhanço, e recolhendo sua saca, olhou à volta procurando não sabia o quê, talvez alguém que o orientasse, na busca de um poiso para descansar.

O olho perspicaz de Sô Gomes pescou-lhe a indecisão à distância e de imediato o abordou, oferecendo-lhe uma palhota de adobe e colmo a que pomposamente chamava quarto. Tinha porta, janela sem aro mas com cortina, e sentina ao fundo, na cerca junto ao mangueiro. Luxos de branco, mas sem aumento do preço. Kyluange aceita. Na realidade não tem grande escolha. Procura trabalho, tem pouco dinheiro, não conhece ninguém naquele mato. Sô Gomes adivinha isso e diz-lhe que faz desconto se ele der uma ajuda no balcão da cantina. E foi assim que Kyluange chegou a Salakynia.

O tempo passa e Kyluange vai ganhando a vida atrás do balcão, falando com este e com aquele, na esperança de um dia poder entrar nos rentáveis negócios das vacas. Franco e honesto, granjeou amizades. Tratava especialmente bem uma bajuda alta e esquia que por lá passava, cheirando a caju, para comprar fuba, óleo e peixe seco. Gostou dela e N’Nori gostou dele. Viam-se à tardinha na margem do mangal, calados, lábios juntos dividindo o sopro da vida. Um dia, quando N’Nori saía pela porta da cantina, Sô Gomes, de um modo boçal, comentou: Valente fêmea ham, preto? É ou não é? Kyluange sentiu medo, e não respondeu.

N’Nori tomou o caminho de casa. A areia range atrás dos seus passos. De repente, dois braços prendem-na ao chão e um queixo mal barbeado pica-lhe a espádua nua. Tudo acontece num instante, sem gritos. Quando N’Nori emerge do pavor súbito, já a mão de Sô Gomes lhe tapa a boca. O primeiro gemido da sua derrota morre na palma da mão húmida e bruta do cantineiro. N’Nori não sabe quem a atacou. Ao pavor sufocante, sucede um medo vazio e difuso. Um joelho espeta-se-lhe na coxa esquerda e um pé de chumbo dobra-lhe a perna direita. Caem, rolam no chão, travam uma luta que N’Nori sabe perdida. O solo de areias soltas molda-se com os movimentos desesperados do seu corpo, provocando uma concavidade no chão e sente o seu peito sufocado pelo tronco enorme do cantineiro. Aflita, tenta evitar que as suas pernas nuas sejam afastadas por dois joelhos vestidos. Contrai-se, esperneia, e morde com raiva a orelha gordurosa que lhe roça os lábios.

Um soco corta-lhe a respiração. Nasce-lhe um vómito, provocado pelo sabor pastoso e meio salgado do sangue misturado com suor, que escorre da orelha ferida. A angústia e o enjoo amolecem-na, e sente um suor frio que a arrasta numa vertigem. Perde os sentidos. Volta a si com os impulsos sôfregos de um corpo enorme sobre o seu. No dorso e nas nádegas sente a frescura da areia quando a sua capulana é repuxada com fúria. Umas mãos brutas arrancam-lhe o fio com o nas. Abandona-se a uma horizontalidade inerte. O cantineiro, a arder em sofreguidão, esmaga-a com brutalidade. N’Nori sem alento para resistir, sente um rasgar doloroso, uma profanação dilacerante na exiguidade seca do seu sexo virgem.

Quando Sô Gomes desceu de N’Nori, uma resignação pantanosa encheu a sua alma de menina; uma resignação sem fúrias nem raivas. N’Nori sentou-se e abraçou as pernas com as mãos entrelaçadas, apoiando o queixo no pequenino vale macio que os joelhos unidos formavam. O único movimento do corpo era a procura sem sentido que os olhos iam fazendo, na nudez do embondeiro, no poilão de raízes inchadas que a deveria ter protegido. O cantineiro partia, viam-se-lhe as carnes da barriga escorrerem para as costas, bamboleando desajeitadamente, enquanto procurava compor as calças e a camisa desalinhadas pela refrega.

N’Nori sentia ainda o vómito provocado pela sensação de uma carne hostil zurzindo a sua, daqueles tufos musgosos, daquele suor gordurento arrepiando a sua pele jovem e macia. Levantou-se. O corpo magoado não lhe respondia. O ombro direito estava mordido e os seios doíam-lhe de tanto terem sido apertados. Sentia um ardor intenso no ventre e pelo interior das coxas uma pasta de sangue e areia empapava-lhe a capulana.

Apanha do chão o fio de couro quebrado com o nas ainda pendurado. Não entende como o mezinho perdeu força, e não protegeu a sua virgindade. Chorando baixinho, rumou à tabanca, e lá entre soluços falou todo o seu desgosto para Ibraim N’Kunto.

O velho chaman, olhos vermelhos, mandou tocar o bombolom convocando um batuque. O povo reunido no mato, ouviu a desgraça de N’Nori e choraram de raiva com ela. Era preciso matar Sô Gomes. Os Irans não lhes perdoariam se nada fizessem. Mas Kyluange falou, não em defesa do cantineiro mas a chamar o povo à razão. Cabaçu de bajuda para branco não tinha valor. Se eles matassem Sô Gomes a tropa viria e os homens seriam levados para castigo e as mulheres debochadas. Não, afinal, N’Nori estava viva, já não tinha valor para primeira esposa, é certo, mas estava viva. Poderia sempre ser segunda ou terceira e parir na mesma, muitas vezes. O povo tinha de se acalmar e regressar às suas esteiras, porque a noite ia alta. E assim foi. Kyluange, tomando a mão de N’Nori, chorou com ela de raiva e de tristeza, no caminho de regresso. Era noite de Lua Cheia.

Na manhã seguinte, N’Binta Ká encontrou a porta da cantina fechada. Comentou com a comadre, mas durante todo esse dia a porta não se abriu. Pela tardinha N’Nori esperou por

Kyluange na margem do mangal, mas ele não apareceu. Nem nessa tarde, nem nas tardes que se seguiram. Dias depois, o Chefe de Posto mandou que se arrombasse a porta da cantina. Lá dentro, olhos arregalados, boca escancarada e carnes horrivelmente inchadas, o cadáver de Sô Gomes apodrecia, desfazendo-se em água. O Chefe de Posto inclinou-se para ele, lenço no nariz, e com a mão puxou um fio de couro ensanguentado com mezinho pendurado que vincava o pescoço do cantineiro.

O tempo que tudo cura e tudo mata passou, mas N’Nori continua a chorar por Kyluange, nas noites de Lua Cheia.

Mafra, 7 de Julho de 2022 [Crónica reposta a 27 de outubro de 2022]

Mário de Sousa

 

Glossário

Bajuda – Adolescente, rapariga virgem

Bantabá – Terreiro central da aldeia

Bombolom – Tambor indígena utilizado para enviar mensagens

Cabaçu – Hímen

Codé – Filho /a mais novo/a

Djémias – Gémias

Fanadu – Cerimónia de passagem de rapaz a adulto. É feita a excisão do perpússio

Finadu – Morto

Fugu – Fogo

Goss goss – Logo logo / rápido

Iran – Irã, Deus dos animistas

Kodjun – Sexo masculino, pénis

Mestra – Parteira

Mindjer- Mulher

Mininu – Menino/a

Nas – Amuleto, mezinho

Pari – Parto, altura de parir

Rapa – Festa muçulmana em honra dum recém-nascido, onde é dado um nome ao bebé.

Tabanca – Aldeia

Tchon – Chão, lugar de nascimento, sítio onde se pertence


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